segunda-feira, 12 de janeiro de 2015

VICENTE

Vicente



Miguel Torga (1907-1995)



Naquela tarde, à hora em que o céu se mostrava mais duro e mais sinistro, Vicente abriu as asas negras e partiu.Quarenta dias eram já decorridos desde que, integrado na leva dos escolhidos, dera entrada na Arca. Mas desde o primeiro instante que todos viram que no seu espírito não havia paz. Calado e carrancudo, andava de cá para lá numa agitação contínua, como se aquele grande navio onde o Senhor guardara a vida fosse um ultraje à criação. Em semelhante balbúrdia - lobos e cordeiros irmanados no mesmo destino -, apenas a sua figura negra e seca se mantinha inconformada com o procedimento de Deus. Numa indignação silenciosa, perguntava: - a que propósito estavam os animais metidos na confusa questão da torre de Babel? Que tinham que ver os bichos com as fornicações dos homens, que o Criador queria punir? Justos ou injustos, os altos desígnios que determinavam aquele dilúvio batiam de encontro a um sentimento fundo, de irreprimível repulsa. E, quanto mais inexorável se mostrava a prepotência, mais crescia a revolta de Vicente.

Quarenta dias, porém, a carne fraca o prendeu ali. Nem mesmo ele poderia dizer como descera do Líbano para o cais de embarque e, depois, na Arca, por tanto tempo recebera das mãos servis de Noé a ração quotidiana. Mas pudera vencer-se. Conseguira, enfim, superar o instinto da própria conservação, e abrir as asas de encontro à imensidão terrível do mar.
A insólita partida foi presenciada por grandes e pequenos num respeito calado e contido. Pasmados e deslumbrados, viram-no, temerário, de peito aberto, atravessar o primeiro muro de fogo com que Deus lhe quis impedir a fuga, sumir-se ao longe nos confins do espaço. Mas ninguém disse nada. O seu gesto foi naquele momento o símbolo da universal libertação. A consciência em protesto activo contra o arbítrio que dividia os seres em eleitos e   condenados.
Mas ainda no íntimo de todos aquele sabor de resgate, e já do alto, larga como um
trovão, penetrante como um raio, terrível, a voz de Deus:
– Noé, onde está o meu servo Vicente?
Bípedes e quadrúpedes ficaram petrificados. Sobre o tombadilho varrido de ilusões, desceu, pesada, uma mortalha de silêncio.
Novamente o Senhor paralisara as consciências e o instinto, e reduzia a uma pura passividade vegetativa o resíduo da matéria palpitante. 
Noé, porém, era homem. E, como tal, aprestou as armas de defesa.
– Deve andar por aí... Vicente! Vicente! Que é do Vicente?!... Nada.
– Vicente!... Ninguém o viu? Procurem-no!
Nem uma resposta. A criação inteira parecia muda.
– Vicente! Vicente!. Em que sítio é que ele se meteu?
Até que alguém, compadecido da mísera pequenez daquela natureza, pôs fim à comédia.
– Vicente fugiu...
– Fugiu?! Fugiu como?
– Fugiu... Voou...
Bagadas de suor frio alagaram as têmporas do desgraçado. De repente, bambearam-lhe
as pernas e caiu redondo no chão.
Na luz pardacenta do céu houve um eclipse momentâneo. Pelas mãos invisíveis de quem comandava as fúrias, como que passou, rápido, um estremecimento de hesitação. Mas a divina autoridade não podia continuar assim, indecisa, titubeante, à mercê da primeira subversão. O instante de perplexidade durou apenas um instante. Porque logo a voz de Deus ribombou de novo pelo céu imenso, numa severidade tonitruante.
– Noé, onde está o meu servo Vicente?
Acordado do desmaio poltrão, trémulo e confuso, Noé tentou justificar-se.
– Senhor, o teu servo Vicente evadiu-se. A mim não me pesa a consciência de o ter ofendido, ou de lhe haver negado a ração devida. Ninguém o maltratou aqui. Foi a sua pura insubmissão que o levou... Mas perdoa-lhe, e perdoa-me também a mim... E salva-o, que, como tu mandaste, só o guardei a ele...
– Noé!... Noé!....
E a palavra de Deus, medonha, toou de novo pelo deserto infinito do firmamento. Depois, seguiu-se um silêncio mais terrível ainda. E, no vácuo em que tudo parecia mergulhado, ouvia-se, infantil, o choro desesperado do Patriarca, que tinha então seiscentos anos de idade.
Entretanto, suavemente, a Arca ia virando de rumo. E a seguir, como que guiada por um piloto encoberto, como que movida por uma força misteriosa, apressada e firme - ela que até ali vogara indecisa e morosa ao sabor das ondas -, dirigiu-se para o sítio onde quarenta dias antes eram os montes da Arménia.
Na consciência de todos a mesma angústia e a mesma interrogação. A que represálias recorreria agora o Senhor? Qual seria o fim daquela rebelião?
Horas e horas a Arca navegou assim, carregada de incertezas e terror. Iria Deus obrigar o corvo a regressar à barca? Iria sacrificá-lo, pura e simplesmente, para exemplo? Ou que iria fazer? E teria Vicente resistido à fúria do vendaval, à escuridão da noite e ao dilúvio sem fim? E, se vencera tudo, a que paragens arribara? Em que sítio do universo havia ainda um retalho de esperança? Ninguém dava resposta às próprias perguntas. Os olhos cravavam-se na distância, os corações apertavam-se num sentimento de revolta impotente, e o tempo passava.
Subitamente, um lince de visão mais penetrante viu terra. A palavra, gritada a medo, por parecer ou miragem ou blasfémia, correu a Arca de lês a lês como um perfume. E toda aquela fauna desiludida e humilhada subiu acima, ao convés, no alvoroço grato e alentador de haver ainda chão firme neste pobre universo. Terra! Nem planaltos, nem veigas, nem desertos. Nem mesmo a macicez tranquilizadora dum monte. Apenas a crista de um cerro a emergir das vagas. Mas bastava.
Para quantos o viam, o pequeno penhasco resumia a grandeza do mundo. Encarnava a própria realidade deles, até ali transfigurados em meros fantasmas flutuantes. Terra! Uma minúscula ilha de solidez no meio dum abismo movediço, e nada mais importava e tinha sentido.
Terra! Desgraçadamente, a doçura do nome trazia em si um travor. Terra... Sim, existia ainda o ventre quente da mãe. Mas o filho? Mas Vicente, o legítimo fruto daquele seio?
Vicente, porém, vivia. À medida que a barca se aproximava, foi-se clarificando na lonjura a sua presença esguia, recortada no horizonte, linha severa que limitava um corpo, e era ao mesmo tempo um perfil de vontade.
Chegara! Conseguira vencer! E todos sentiram na alma a paz da humilhação vingada.
Simplesmente, as águas cresciam sempre, e o pequeno outeiro, de segundo a segundo, ia diminuindo.
Terra! Mas uma porção de tal modo exígua, que até os mais confiados a fixavam  ansiosamente, como a defendê-la da voragem. A defendê-la e a defender Vicente, cuja sorte se ligara inteiramente ao telúrico destino.
Ah, mas estavam «rotas as fontes do grande abismo e abertas as cataratas do céu»! E homens e animais, começaram a desesperar diante daquele submergir irremediável do último reduto da existência activa. Não, ninguém podia lutar contra a determinação de Deus. Era impossível resistir ao ímpeto dos elementos, comandados pela sua implacável tirania. Transida, a turba sem fé fitava o reduzido cume e o corvo pousado em cima. Palmo a palmo, o cabeço fora devorado. Restava dele apenas o topo, sobre o qual, negro, sereno, único representante do que era raiz plantada no seu justo meio, impávido, permanecia Vicente. Como um espectador impessoal, seguia a Arca que vinha subindo com a maré. Escolhera a liberdade, e aceitara desde esse momento todas as consequências da opção. Olhava a barca, sim, mas para encarar de frente a degradação que recusara. 
Noé e o resto dos animais assistiam mudos àquele duelo entre Vicente e Deus. E no espírito claro ou brumoso de cada um, este dilema, apenas: ou se salvava o pedestal que sustinha Vicente, e o Senhor preservava a grandeza do instante genesíaco – a total autonomia da criatura em relação ao criador -, ou, submerso o ponto de apoio, morria Vicente, e o seu aniquilamento invalidava essa hora suprema. A significa- ção da vida ligara-se indissoluvelmente ao acto de insubordinação. Porque ninguém mais dentro da Arca se sentia vivo. Sangue, respiração, seiva de seiva, era aquele corvo
negro, molhado da cabeça aos pés, que, calma e obstinadamente, pousado na derradeira
possibilidade de sobrevivência natural, desafiava a omnipotência.
Três vezes uma onda alta, num arranco de fim, lambeu as garras do corvo, mas três vezes recuou. A cada vaga, o coração frágil da Arca, dependente do coração resoluto de Vicente, estremeceu de terror. A morte temia a morte. Mas em breve se tornou evidente que o Senhor ia ceder. Que nada podia contra aquela vontade inabalável de ser livre. Que, para salvar a sua própria obra, fechava, melancolicamente, as comportas do céu. 

A FESTA

A FESTA



Miguel Torga (1907-1995)

Tinha cada um o seu sonho para a festa de Santa Eufémia. O Nobre, era deslindar umas contas velhas com o Marcolino; a mulher, era pagar a promessa que fizera por causa do ferrujão dos bois; a filha, era passar a noite no arraial, a dançar a cana-verde nos braços do namorado.
Por mais duro que fosse o serviço - roçar estrume, saibrar ou arrancar batatas -,bastava a ideia desse dia longínquo para o cansaço se evaporar. O Nobre via-se limpo do nome de covardola com que o Marcolino o mimoscara; a Lúcia imaginava-se a dar voltas à capela, acarinhada pela bênção protectora da santa; a Otília fervia já no calor dum contacto permitido e amado, ao som da música de Torrozeio.
- Quando vamos à Vila? - perguntava a rapariga dois meses antes, a pensar na saia nova de merino.
- Tens tempo... - respondia o pai, que também acalentava o desejo inconfessado, de uma faixa de cinco voltas.
Sorrateiramente, faziam os três, pelo ano fora, economias para esse dia, num segredo soma e feliz. O Nobre vendera os bois por dezoito notas e escamoteara uma da conta; a mulher roubara dois alqueires de centeio da tulha, e passara-os à socapa ao padeiro; a Otília entendeu-se com o comprador do vinho e surripiou um almude na altura da medição.
Os projectos ocultos de cada um implicavam despesas extraordinárias, que a economia oficial da casa não poderia consentir. O Nobre queria ter com que pagar de beber à farta aos amigos, diante dos quais se sentia na obrigação de lavar a honra, mas não estava disposto a prestar contas à mulher. Esta, por sua vez, além da penitência da promessa, tencionava reforçar com uma boa esmola a gratidão à santa, e não via razão para meter o homem nesses pormenores de fé. A moça prevenia-se para todas as eventualidades. Se o rapaz a brindasse com uma limonada, precisava ela de lhe oferecer pelo menos uma cerveja. Amor com amor se paga... De resto, no capítulo de teres e haveres, cada qual sabia intimamente que nenhum dos outros estava descalço, à espera do cão que manqueja. Mas, por defesa própria, fechavam os olhos à suspeitosa fonte dos proventos alheios. Era um jogo infantil, que a família inteira jogava harmoniosamente.
E foi assim, de bolsa confortada e vestidos de novo ou de lavado, que os três se meteram a caminho da serra, na véspera da romaria.
A ermida de Santa Eufêmia fica no alto de um descampado de fragões e à sombra de meia dúzia de castanheiros da idade do mundo é que se lhe faz a festa. Gente de todas as castas, cabritos assados de quantos rebanhos pastam nas redondezas, vinho de Guiães e de Abaças, trigo de Favaios, doceiras da Magalhã e de Sabrosa, andores armados por quatro freguesias, duas músicas, sete padres, pregador de Murça - o divino e o profano dão ali as mãos, num amplo entendimento. O céu desce um pouco, a montanha sobe mais, e ninguém sabe ao certo a que reino pertence. Com a cuba do estômago cheia e a imagem da Santa espetada na fita do chapéu, um homem sente-se capaz de tudo: de matar o semelhante e de comungar. Ouve-se um padre-nosso e uma saraivada de asneiras ao mesmo tempo. E apaga-se naturalmente do espírito a estrema que separa o mundo real do irreal. Só quem vem de peito feito para cumprir à risca a devoção que o traz, seja ela qual for, consegue encontrar pé num tal mar de contradições.
Ora, justamente, o Nobre, a mulher e a filha faziam parte desse restrito número de romeiros. Traziam um programa definido no pensamento., e nenhuma solicitação, por mais sedutora, os faria mudar de propósito.
- Bem, vou à minha vida... - anunciou a Lúcia logo depois da merenda, a arranjar liberdade.
Era muito devota de Santa Eufêmia e gostava de lhe abrir o coração com vagar, a sós, numa intimidade lá dela.
- Eu também quero falar aí com umas pessoas... - preveniu o homem, que não se confessava em matéria de zaragatas.
- Fico então sozinha... - disse a rapariga, a fingir solidão. - O que vale é que sempre hei-de encontrar alguém da nossa terra...
- Diverte-te, mas tem juízo... - avisou a mãe.
- Não se aflija, que ninguém me come! Partiu cada qual para seu lado, o Nobre em direcção às pipas de vinho, a mulher direita como um tiro à capela, e a filha em sentido oposto às rixas do pai e ao beatério da mãe.
- Ora viva! - saudou-a daí a nada o Leonel, antes de ela lhe pôr os olhos.
- Ai, és tu?!... Até tive medo... Estavam aprazados para um bailado sem fim e ainda não tinham acabado os cumprimentos rodopiavam já nos braços um do outro.
- Sejas bem aparecido! - cumprimentou chibante o Marcolino, mal o Nobre se aproximou, todo ancho., de faixa nova., corrente de prata ao peito e calças de boca de sino.
- Olé!... Só a Santa é que não disse nada à devota. Olhou-a do altar com os olhos vidrados e assim se ficou enquanto a Lúcia lhe desfiava salve-rainhas aos pés.
Entretanto anoitecera e o arraial abria na escuridão da serra uma clareira luminosa, intensa de vida e paixão. As músicas desafiavam-se o mais rumorosamente que podiam, os foguetes estoiravam no ar como bombas de dinamite, os pares levantavam nuvens de pó, havia mocadas aqui e além, e nas barracas comia-se, bebia-se e jogava-se a vermelhinha.
- Vamos até ali... - convidou, implorativo, o Leonel, perdido pela namorada.
- Ali, aonde? - perguntou ela, sem forças para resistir.
- Ali adiante...
- Malandro, que mas hás-de pagar todas hoje! - gritava o Nobre de mão no ar.
- Santa Maria, Mãe de Deus, rogai por nós, pecadores...
Ninguém tinha tempo para cuidar dos outros. Cada um tratava de si, dos seus amores, da sua fé, dos seus ódios.
À medida que as horas avançavam, os menos resistentes iam cedendo às leis do sono e do cansaço. Qualquer sítio lhes servia de cama. E às tantas, dentro da capela e no adro, o chão era uma estrumeira de corpos, adormecidos numa promiscuidade de animais. Crianças ressonavam de boca aberta, velhas descompostas, escancaradas, mostravam as pernas secas e varicosas, e roliços braços de raparigas reluziam inertes à luz dos foguetes. Ao lado de cada um, o cesto do farnel, o varapau ou a cana de morteiro, guardada como um troféu.
- Oh! meu Deus da minha alma, que há-de ser de mim?!... - gemia a Otília.
- Agora já ele sabe quem é covarde! - farroncava o Nobre.
- Salvé, Rainha, Mãe de misericórdia, vida e doçura... - orava a Lúcia.
O calor das fragas e da terra, que o sol cozera todo o dia, mantinha a satumal num mormaço de febre. A lamentar o mau passo, a blasonar, ou a erguer um hino de glorificação, as almas tinham a mesma força e o mesmo dom de entrega, embora qualquer coisa - a escuridão talvez - roubasse a cada acto a paz da plenitude.
- Juro... - prometia frouxamente o Leonel, reticente, a dizer que casava.
- Chegaste para ele, não há dúvida... - concediam os amigos do Nobre, depois da refrega, num dúbio reconhecimento da bravura com que se houvera.
- Amen.. . – ouviu-a Lucia dos próprios lábios, a sentir na alma o vazio do rendeiro que pagou a renda.
O contrato era de se encontrarem no fim do arraial, pela madrugada, para darem ao dente e beberem mais uma pinga. E realmente, mal a última girândola subiu ao ar e morreu em fumo no céu, lá estavam todos no sítio combinado, exaustos, de olhos vermelhos da poeira e do sono, cada qual com as contas do seu rosário passadas.
Acordada pela luz da manhã que rompia calma e diáfana, a serra mostrava os largos horizontes varridos e amortecia nas consciências a confusa exaltação que a noite permitira. As rodas de fogo de artifício, que a multidão vira rodopiar num frenesim de loucura, eram agora a desoladora do transitório, tortas e desmanteladas nos eixos; vómitos de vinho, ossos descarnados, excrementos e cascas de melancia testemunhavam a íntima e triste miséria da vida; e pobres pedintes, andrajosos e aleijados, punham termo ao interregno das lamúrias e mostravam novamente as chagas cobertas de moscas. Uma dormência lassa
quebrava o corpo, a vontade, a fé e a própria esperança. Nas caras sanguíneas dos que tinham palmilhado léguas para chegar ali havia uma palidez de desilusão, de inconfessado e dorido arrependimento.
- Foi bonito... - disse, contudo, a rapariga, a disfarçar o desencanto.
- Foi - respondeu o pai, com secura.
- Mas parece que gostei mais do ano passado... - arriscou a mãe, a sangrar dos
joelhos.
- Vamos a ver logo que tal a procissão...
Defendiam-se como podiam da luz crua da realidade. Aliás já nenhuma esperança sincera os amparava. O Nobre dera mas recebera, e duas lombeiradas do Marcolino tiravam-lhe o contentamento da desforra. Ou tinha uma costela partida, ou grossa avaria dentro da caixa do peito. A Lúcia, de contas saldadas, e com as rótulas à mostra da areia grossa do chão, sentia-se rarefeita como um fole espremido. A rapariga, essa reduzia tudo à sua honra perdida atrás de uma fraga que nem saberia agora identificar. Mas iam todos encher a barriga, dormir, e arranjar novas forças para continuarem a gozar pelo dia fora aquela festa a Santa Eufêmia, pela qual tinham suspirado tanto o ano inteiro.

FRONTEIRA

Fronteira


Miguel Torga (1907-1995)

Quando a noite desce e sepulta dentro do manto o perfil austero do castelo de Fuentes, Fronteira desperta.
Range primeiro a porta do Valentim, e sai por ela, magro, fechado numa roupa negra de bombazina, um vulto que se perde cinco ou seis passos depois.
A seguir, aponta à escuridão o nariz afilado do Sabino. Parece um rato a surgir do buraco. Fareja, fareja, hesita, bate as pestanas meia dúzia de vezes a acostumar-se às trevas, e corre docemente a fechadura do cortelho.
O Rala, de braço bambo da navalhada que o D. José, em Lovios, lhe mandou à traição, dá sempre uma resposta torta à mãe, quando já no quinteiro ela lhe recomenda não sei quê lá de dentro.
O Salta, que parece anão, esgueira-se pelos fundos da casa, chega ao cruzeiro, benze-se, e ninguém lhe põe mais a vista em cima.
A Isabel, sempre com aquele ar de quem vai lavar os cueiros de um filho, sai quando o relógio de Fuentes, longe e soturnamente, bate as onze. Aparece no patamar como se nada fosse, toma altura às estrelas, se as há, e some-se na negrura como os outros.
O Júlio Moinante, esse levanta o gravelho, abre, senta-se num degrau da casa, acomoda o coto da perna da melhor maneira que pode, e fica horas a fio a seguir na escuridão o destino de um que lhe dói. Era o rei de Fronteira. Morto o Faustino nas Pedras Ninhas, herdou-lhe o guião. Mas um dia o Penca agarrou-o com a boca na botija, e foi só uma perna varada e as tripas do macho à mostra. Quando, naquele estado, entraram ambos em Fronteira, ele e o animal, parecia que o mundo se ia acabar ali. Mas tinha o filho, o João. E agora, enquanto o rapaz, como os mais, se perde nos caminhos da noite, vai-lhe seguindo os passos da soleira da porta.
Saem outros, ainda. Devagar, pelas horas a cabo, os que parece terem-se esquecido, vão deslizando da toca. Só mesmo quando não existe mais corpo adulto e válido no povo é que Fronteira sossega.
Coisa estranha: esta rarefacção que se faz na aldeia, longe de a esvaziar, enche-a. A terra veste-se de um sentido novo, assim deserta, à espera. Pequenina, de casas iguais e rudimentares, escondida do mundo nas dobras angustiadas e ossudas de uma capucha de granito, as horas que medeiam entre o seu coração e Fuentes são tão fundas e carregadas que quase magoam. Quem regressará primeiro?,
Noventa vezes em cada cem, é a Isabel. Aquilo são pés de veludo! Mas às vezes é o Sabino. Sempre de nariz no ar' a bater as pestanas contra a luz da candeia, entra em casa alagado em água e com um bafo tal a aguardente que tomba.
- Arruma! A mulher nem suspira. Pega no saco, mete-o debaixo da cama, e põe-se a lançar o caldo. Por fim, começa:
- O Valentim?
- Chumbo, já passou.
- O Rala?
- Uma caixa de conhaque. Vem por Fomos.
- O Salta?
- Foi a Tomeros. Volta amanhã.
- A Isabel?
- Seda.
Ao sair do Padilha parecia um bombo. E enquanto a maçã de Adão sobe e desce no pescoço comprido do Sabino, e a malga de caldo se esvazia, das respostas que dá e do mágico ventre da noite, diante do olhar angustiado da Joana e de Fronteira, vão surgindo os que faltam ainda: o João, o Félix e o Maximino.
Quando algum não regressa, e por lá fica varado pela bala de uma lei que Fronteira não pode compreender, o coração da aldeia estremece, mas não hesita. Desde que o mundo é mundo que toda a gente ali governa a vida na lavoura que a terra permite. E, com luto na alma ou no casaco, mal a noite escurece, continua a faina. A vida está acima das desgraças e dos códigos. De mais, diante da fatalidade a que a povoação está condenada, a própria guarda acaba por descrer da sua missão hirta e fria na escuridão das horas. E se por acaso se juntam na venda do Inácio uns e outros - guardas e contrabandistas -, fala-se honradamente da melhor maneira de ganhar o pão: se por conta do Estado a vigiar o ribeiro, se por conta da Vida a passar o ribeiro.
De longe em longe, porém, quando há transferências ou rendições, e aparecem caras e consciências novas, são precisos alguns dias para se chegar a essa perfeição de entendimento entre as duas forças. O que vem teima, o que está teima, e parece aço a bater em pederneira. Mas tudo acaba em paz.
Desses saltos no quotidiano de Fronteira, o pior foi o que se deu com a vinda do Robalo. Já lá vão anos. O rapaz era do Minho., acostumado ao positivismo da sua terra: um lameiro, uma junta de bois, uma videira de enforcado., o Abade muito vermelho à varanda da residência, e o Senhor pela Páscoa. Além disso, novo no ofício - na guarda, para onde entrara em nome dessa mesma terrosa realidade: um ordenado certo e a reforma por inteiro. Daí que lhe parecesse o chão de Fronteira movediço sob os pés. Mal chegou e se foi apresentar ao posto, deu uma volta pelo povoado. E aquelas casas na extrema pureza de uma toca humana, e aqueles seres deitados ao sol como esquecidos da vida, transtornaram-lhe o entendimento.
- Esta gente que faz? - perguntou a um companheiro já maduro no oficio.
- Contrabando.
- Contrabando!? Todos!? E as terras, a agricultura?
- Terras! ? Estas penedias.
O Robalo, queria falar de qualquer veiga possível, de qualquer chá que não vira ainda, mas tinha forçosamente de existir, pois que na sua ideia um povo não podia viver senão de hortas e lameiros. Insistiu por isso na estranheza. Mas o outro lavou dali as mãos:
- Não. Aqui, a terra, ao todo, ao todo, produz a bica de água da fonte. O resto vão-no buscar a Fuentes.
Mas nem assim o Robalo entendeu Fronteira e o seu destino. No dia seguinte, pelo ribeiro fora, parecia um cão a guardar. Que o dever acima de tudo, que mais isto, que mais aquilo - sítio que rondasse era sítio excomungado. Até as ervas falavam quando qualquer as pisava de saco às costas. Mal a sua ladradela de mastim zeloso se ouvia., ou se parava logo ou nem Deus do céu valia a um cristão. Em quinze dias foram dois tiros no peito do Fagundes, um par de coronhadas no Albino, e ao Gaspar teve-o mesmo por um triz. Se não dá um torcegão no pé quando apontava, varava a cabeça do infeliz de lado a lado. A bala passou-lhe a menos de meio palmo das fontes.
Mas Fronteira tinha de vencer. Primeiro, porque o coração dos homens, por mais duro que seja, tem sempre um ponto fraco por onde lhe entra a ternura; segundo, porque o Diabo põe e Deus dispõe.
Foi assim: Apesar de inconvivente e mazombo, num domingo em que havia festa em Fronteira, o
Robalo, que estava de folga, não resistiu: chegou-se aos bons. E quem havia de lhe entrar pelos olhos dentro ao natural, cobertinha da luz doirada do sol? A Isabel! A rapariga tirava a respiração a um mortal. Vinte e dois anos que nem vinte e dois dias de S. João. Cada braço, cada perna, cada seio, que era de a gente se lamber. Ora como ele andava também na mesma conta de primaveras, e não era de pedra, o lume. pegou-se à estopa. De tal sorte, que, quando o dia acabou, o Robalo, não parecia o mesmo. Evaporara-se-lhe o ar de salvador do mundo, e até já via Fronteira doutro jeito. Se não fosse aquele maldito instinto de castro-laboreiro... Tempos depois, apesar de os amores com a Isabel irem de vento em popa, cama e tudo, ainda o ladrão se lhe sai com esta:
- Gosto muito de ti, tudo o mais, mas se te encontro a passar carga e não paras, atiro como a outro qualquer.
A Isabel riu-se.
- Palavra?!
- Palavra. - A mim?!!!
- A minha mãe, que fosse...
Desprenderam-se dos braços um do outro melancolicamente. E quando no dia seguinte o Robalo voltou ao ninho tinha a porta fechada.
Como a vida em Fronteira é de noite que se vive, e o Robalo, era todo senhor do seu nariz, puderam decorrer meses sem o rapaz pôr os olhos sequer na rapariga. Ela passava o ribeiro como podia, e ele guardava o ribeiro como podia.
Fronteira olhava. E até ao Natal a vida foi deslizando assim. Na noite de Consoada, porém., aconteceu o que já se esperava. Parte da guarnição tinha ido de licença. Todos se chegavam ao calor da lareira familiar, saudosos de paz e harmonia. Mas o Robalo ficara firme no seu posto.
Nevava. Um frio tal que o próprio bafo gelava mal saía da boca. Visto de dentro da capa de oleado, o mundo parecia uma coisa irreal, alva, inefável como um sonho. O céu estava ainda mais silencioso e mais alto que de costume. E qualquer parte do Robalo, sem ele querer, diluía-se na magia que enluarava tudo. No Minho, numa noite assim... Pena a Isabel ter-lhe saído contrabandista... Tê-la encontrado numa terra daquelas... Senão, mais tarde, quando tivesse a reforma... Até mesmo agora... Comovido, deixou-se perder por momentos na vaga mansidão da brancura.
Mas, como por detrás do homem o guarda continuava alerta, mal acabava de pisar aquele caminho sem pedras, já o seu ouvido de cão da noite lhe trazia à consciência um rumor de passos só pressentidos.
Acordou inteiro. Tchap, tchap, tchap... Pela neve fora, da outra banda, aproximava-se alguém.
Quem diabo seria? O Carrapito? O Carrapito, não. Olha o Carrapito meter-se a um nevão daqueles! O Samuel? O Samuel também não. Era mais atarracado. Só se fosse o Gregório... Sim, porque o Cristóvão, que tinha o mesmo corpo, estava em Vila Seca, no namoro. Vira-o passar... A pessoa que vinha, caminhava sempre, direita como um fuso ao cano da carabina.
Tchap... Tchap... Todo gelado por fora, mas quente da emoção que lhe dava sempre qualquer alma em direcção ao ribeiro, o Robalo esperou. E, quando os passos se molharam no rego de água e chegaram à margem, a mola tensa estalou:
- Alto!
Mas o gume da palavra de comando não conseguiu cortar sequer os flocos de neve. A sensação que teve ao gritar foi a de um baque amortecido. Uma espécie de tiro à queima roupa.
Repetiu:
- Alto.
Uma voz cansada entrou-lhe no coração.
- Sou eu... TUM
- Sou. Mas nem trago contrabando, nem me posso demorar.
- TUM. Eu mesmo. E já disse que não trago contrabando, nem me posso demorar.
Se ele não fosse o Robalo, cego e frio dentro da função, o que lhe apetecia era tomar nos braços aquele corpo amado e rebelde, enfarinhado de neve e não sabia de que outra secreta alvura. Mas era o Robalo guarda, a guardar. Por isso fez arrefecer nas veias a fogueira que o escaldava e estacou o primeiro passo do vulto com nova ordem:
- Alto, já disse!
Docemente, numa carícia estranha para os seus ouvidos, quem passava falou:
- Não berres, que não vale a pena. Este volume todo - é gente. A intenção era boa, era... Mas de repente, em Fuentes, começam-me a apertar as dores... Se não me apego às pernas com quanta alma tinha, nascia-me o rapaz galego. Querias?
O coração do Robalo não aguentava tanto. Um filho! Um filho seu no ventre de uma contrabandista!
Regelou-se ainda mais.
- A mim não me enganas tu. Gente! No posto eu te direi se isso é gente, ou são cortes de seda. Vamos lá!
Pela neve fora a presença da rapariga era como um enigma sagrado diante dos olhos dele. Mas o guarda guardava.
- Ó homem de Deus, deixa-me ir enquanto posso! Olha que se as dores voltam como há bocado, é no sítio onde estiver...

O Robalo, porém, tinha de levar a cruz ao fim. já com a Isabel fechada na pobreza da tarimba, esperou ainda o milagre de a sua obstinação acabar em tecidos, em seco e peco contrabando posto a nu. 
Fronteira, contudo, podia mais do que uma absurda obstinação. E, mal a parturiente
atirou lá de dentro o primeiro grito a valer, o Robalo ruiu.
Desesperado, parecia um doido por toda a casa. De quando em quando, arrastado
por uma força que não conseguia dominar, chegava-se à porta do quarto, humilde, rasgado
de cima abaixo de ternura:
- Isabel... Um berro que estalava fino e súbito fazia-o recuar transido para o mais
fundo da sala.
Até que a trovoada amainou e do pesado silêncio que se fez nasceu para os seus
ouvidos maravilhados um choro doce, novo, muito puro, que lhe arrancou lágrimas dos
olhos.
Chegou-se à porta outra vez:
- Isabel... A voz cansada da mulher mandou-o entrar. E, quando o dia rompeu,
Fronteira tinha de todo ganho a partida. Demitido, o Robalo juntou-se com a rapariga. Ora
como a lavoura de Fronteira não é outra, e a boca aperta, que remédio senão entrar na lei
da terra! Contrabandista.
E aí começam ambos a trabalhar, ele em armas de fogo, que vai buscar a Vigo, e ela
em cortes de seda, que esconde debaixo da camisa, enrolados à cinta, de tal maneira que já
ninguém sabe ao certo quando atravessa o ribeiro, grávida a valer ou prenha de mercadoria.

MARCOS

Marcos


Miguel Torga (190-1995)

Enjeitado e comido de cieiro, o Marcos apareceu em Valdigem. a pedir. Os pés, descalços e pequeninos, pareciam dois aranhiços vermelhos a cirandar na neve. Pelos rasgões das calças viam-se-lhe retalhos do corpo de criança. Um bragués ensebado caía-lhe sobre as orelhas e tapava-lhe os olhos de doninha. E um casaco de homem, de mangas arregaçadas e ombros caídos, cheio de cunetas e fechado na gola com uma segurança, acabava por fazer dele um cabide sem pernas.
- Não podes trabalhar, rapaz? - ralhou-lhe a Engrácia, a dar-lhe um migalho de pão.
- Posso, sim senhora. Quer-me para moço? Não o quis a Engrácia, mas ficou em casa do Maia.
- Onde arranjaste o enxalmo, João? - perguntou-lhe o cunhado.
- Na rua... É cão vadio...
- Está bem! E meteste-o de portas para dentro sem saber nada dele?
- Tens medo que me degole? E o Maia ria-se daquela desconfiança crónica do parente.
- Mas pode-te roubar... - Caldo da panela! A conversa do costume. Na monotonia rotineira da povoação, só o Mala conseguia agitar o espírito de todos com o simples gosto de estender a mão ao desconhecido. Sem grande generosidade e amigo de acautelar o que lhe pertencia, tinha contudo um fraco: a novidade. E o que aparecia na terra de inesperado ou de pitoresco passava-lhe pelo quinteiro. Nas histórias de Valdigem entrava sempre o seu nome, duma maneira ou doutra. Uns ciganos que deixara acampar no souto levaram-lhe a égua; o homem dos Robertos, que agasalhara em casa, fez uma pantomina no dia seguinte das zangas dele com a mulher; uma recoveira de Freixo pariu-lhe numa loja. Mas o Maia achava graça a tudo e, mal se oferecia nova oportunidade, ei-lo metido outra vez a empresário de aldeagantes. Olhava os seres estranhos com a curiosidade dum espectador. Muito embora às vezes eles comessem a isca e sujassem no anzol, nem por isso deixava de se rir como um perdido, se o caso o merecia. No fundo, era um imaginativo sem imaginação. E aplaudia incondicionalmente a dos outros, mesmo quando fazia figura de asno. O Alexandre Rato é que se doía, zeloso do bom nome da família.
- Como se chama o pequeno? - Marcos. - Marcos quê? - Marcos. É tudo o que sei dele. Não interrogava os actores. Dava-lhes um palco para a representação e ficava à espera. Nem conhecia o passado, nem lhe interessava o futuro de nenhum.
- Tu lá te entendes. Mas eu cá, pelo sim, pelo não... O rapaz não caiu do céu! Há-de ter vindo de alguma parte. Ao menos perguntar-lhe a terra onde nasceu!
- Nada. Não pergunto nada. - Olha, oxalá tenhas sorte... Encolheu os ombros, indiferente à ambiguidade do voto. Deus, ou quem mandava no andamento do mundo, conhecia bem as suas necessidades. Há muito que não fazia outra coisa senão plissar as leiras com a aiveca da charrua, numa desconsolação de corpo e alma. Por isso, tudo seria bem vindo, menos a sensaboria de mais um serviçal com pia de baptismo conhecida e boas informações. Objectivamente., precisava de alguém para substituir o Acúrcio, convocado para o serviço militar. Porque não havia de ser justamente o arábias do rapaz, arribado a Valdigem como andorinha nova, tresmalhada do bando e do tempo?
- Que andas tu a fazer, gabiru? - perguntara-lhe à salda da venda do Belchior, ao vê-lo de penugem arrepiada e com duas torcidas de ranho no nariz.
- A pedir. Sem saber porquê, gostou da pinta do miúdo. E não esteve com meias medidas:
- Queres guardar gado?
- Quero, sim senhor.
- Então, vem daí. A mulher, acostumada já àquelas manias, nem reagiu. Quando o novo hóspede lhe entrou a medo pela cozinha dentro, só disse:
- Assoa-te, ao menos.
O que o pequeno fez à manga do casaco. E logo no dia seguinte o Marcos palmilhava a serra a passear as ovelhas, feliz da vida.
- Por acaso, parece que acertaste... - confessava o Rato, tempos depois, rendido. - É danado., o garoto! ontem encontrei-o nos Pitões com três borregos às costas, acabados de nascer.
- Tem jeito, tem... - Tem jeito., ou tu nunca avezaste coisa tão boa?!
- Ora., não avezei!
- Passa-mo, que eu agradeço. Se não estás contente,, dá-mo.
- Não posso dar aquilo que não é meu! Falava com um espinho a picar-lhe a alma. Muito embora reconhecesse a boa vontade e finura do ganapo, no fundo, esperava dele outra coisa. Não sabia o quê, evidentemente. Mas qualquer maluqueira. Uma façanha inesperada, que desse brado! Assim, diligente e desenxabido, é que era de perder a paciência. E, como não podia confessar os motivos da desilusão, tergiversava diante do entusiasmo do cunhado e dos mais. O rapaz não se distinguia, afinal, dos outros da terra. Aparecia de vez em quando em casa com um láparo arrancado duma lura., soltava-se-lhe o sangue do nariz, mijava na cama - bolas para tal riqueza! E., ainda por cima, sempre ensacado no maldito balandrau, agora mais esfarrapado ainda.
- Trazes o moço tão mal arranjado., João! - protestou um dia o Moisés.
- Bem anda. Desde que tenha a barriga forrada de broa, o resto é luxo.
E o tempo ia correndo na pobreza serrana de Valdigem. Acabou o inverno, passou a primavera, entrou o verão, e o Marcos na mesma triste figura de pobre pedinte, encafuado nos trapos.
- Dá uma roupa ao desgraçado! - aventurou a irmã, a mulher do Rato, já com vergonha de uma tal miséria.
- Dou-lhe mas é cabo do canastro, se torna a roubar uvas a alguém! Que me venham fazer queixa outra vez...
O Marcos recolhia o gado na loja e por acaso ouviu a conversa.
- Mesmo de cotim... - teimava a Júlia.
- Calas o povo.
- O povo não tem nada com a minha vida. Começava a odiar o rapaz. A monotonia das coisas secava-lhe a humanidade. Tinha necessidade de fantasia, de variedade, de abalos súbitos na pasmaceira das horas. Então, sim! Diante duma situação inesperada, trágica ou grotesca, tanto fazia, abria-se-lhe o coração e a carteira.
- Também não sei que mal te fez a criança! - desabafou a irmã, agora com sentimentos de mulher.
- Nem mal, nem bem... Não vale a água que bebe! Mas, enfim... Mudemos de conversa.
- Eu vejo-o é derreadinho o dia inteiro, como um escravo. Logo de manhã cedo, lá vai aquele infeliz...
- Não é por muito madrugar... Debatia-se entre duas forças opostas: por um lado, uma vontade insofrida de correr com o moço a pontapés; por outro, uma espécie de superstição inibidora, uma necessidade secreta de não aceitar a falência da sua esperança. Apesar de tudo, não queria desesperar. Despedir o catraio parecia-lhe dizer adeus para sempre à ilusão. E, acabadas as conversas laudatórias do cunhado, da irmã ou dos outros, continuava a espiar disfarçadamente o rapaz, a ver se o milagre acontecia.
Caiu-lhe a alma aos pés quando ouviu contar que em Grijó um pastor da idade do Marcos, por falta de um espelho onde visse a figura que fazia com a primeira camisa que ia estrear, a vestira ao cão do rebanho, transformado em manequim. Nisto aparece um lobo e quem é que segura o laboreiro? O pequeno bem corria atrás dele a berrar: jau, Jau, dá-me primeiro a camisa! jau, ouve cá, ouve... Era o mesmo que gritar a um mouco. Os que presenciavam a cena riam-se como perdidos... E o maluco às asneiras a quem fazia caçoada e sempre a Jau, olha que ma rasgas!... Jau... Jau...
Um pratinho! Segue-se que quando o cão regressou do combate trazia apenas o colarinho muito bem abotoado à volta do pescoço. O resto tinha ficado em tiras, nas urgueiras.
- Não ser o meu! - desabafou o Maia, sem querer.
- Dá-lhe primeiro a camisa... Coçou a barba, constrangido. - Dava, dava, se ele a merecesse... E largou, para não lhe pedirem mais explicações.
Acabou por ser a própria mulher, a Laura, mísera como uma fuinha, a reclamar:
- Não tens remédio senão comprar uma andaina ao cachopo, agora na Senhora da Saúde...
- Se estiver tão livre da peste!
- Então, manda-o embora.
- Ah! mande! Sossega. Mas primeiro temos de ajustar umas contas velhas. Deixa-me acabar de encher.
O Marcos ouvia a conversa, da cama. - Mas põe-mo a andar antes da festa! Não quero mais falatórios.
- Descansa! já te disse que não vai de anjo na procissão. Até lá, há-de saber o gosto que o fado tem. Pedaço de asno! A gente a matar-lhe a fome, a metê-lo dentro de casa, e sai-me um bandalho que não presta para nada...
A mulher, alheia às razões íntimas de um tal rancor, e sem procurar sequer conhecê-las, começou a roncar. E o Maia adormeceu também.
O Marcos, na sua enxerga, é que ficou ainda a ruminar. Tinha portanto doze dias, quantos demorava ainda a romaria, para pôr o corpo a são e salvo das iras do patrão. Estava informado.
Começou então uma luta surda entre os dois.
O Maia a arranjar pretextos para tosar o miúdo, e este, finório, a redobrar de solicitude, a quebrar-lhe as mãos.
- O filho da puta do rapaz parece que me adivinha os pensamentos!
- Compra-lhe a roupa e fica com ele.
- Não. Prova-me as unhas e depois rua! Foi justamente na véspera do arraial que o Maia conseguiu o almejado pé que esperava. Ergueu-se um migalho mais tarde e, quando foi a dar conta, o gado berrava na loja cheio de fome. Ahn?! Queriam ver? Tinha ou não tinha razão? Ora ali estava o grande zelo do senhor moço!
O sol a pino e sua excelência ainda no primeiro sono!
Sem mais delongas, não fosse o diabo roubar-lhe aquela oportunidade de explodir, entrou no curral de soga na mão. O facínora lá estava ferrado a dormir, com o chapéu esbadanado a cobrir-lhe a cara, por causa das moscas. O grande como! Até que enfim podia dar-lhe uma lição! E sem lhe ficar a doer a consciência... Nada!
O estupor do valdevinos não valia um cigarro. Nem brios, nem criação, nem piada, nem coisíssima nenhuma! Nunca lhe entrara em casa traste tão reles!
De sorriso sardónico nos lábios, pé ante pé, para que fosse a primeira vergastada a acordar o malandrim, chegou-se junto do catre e descarregou a füxia. Mas nem o som da pancada lhe agradou, nem o dorminhoco se doeu. E foi já desconfiado que secundou o golpe.
Viu então com alegria que estava diante duma mistificação. O Marcos enchera as calças e o casaco de palha, metera o corpo debaixo da manta, no sítio da cabeça colocara o cabaneiro, e deixara-lhe ali o fantasma do corpo.
- Ai o grande malandro, que chegou para mim!
Agradecido ao céu por aquele desfecho inesperado, subiu novamente a escada e entrou na cozinha perdido de., riso.
- Tu que tens? - quis saber a mulher, pasmada do despropósito.
- O rapaz saiu-se à última hora! Anda ver...
Até ela achou graça, sem se lembrar que o pequeno não se pusera na alheta nu como viera ao mundo.

Prepararam-se para-a missa e, quando depois no adro os dois contavam o caso, a Elvira Concha, iluminada, responsabilizou-os por uma roupa nova do filho, que na véspera lhe desaparecera de casa misteriosamente. A Laura, semítica e assomadiça, ainda quis discutir. Mas o Maia continuou com a mesma boa disposição, prometeu pagar o prejuízo, e passou o dia a perguntar a todos se precisavam dum espantalho nas leiras, porque tinha lá um.

NATAL

Natal

Miguel Torga (1907-1995)

De sacola e bordão, o velho Garrinchas fazia os possíveis por se aproximar da terra. A necessidade levara-o longe de mais. Pedir é um triste ofício, e pedir em Lourosa, pior. Ninguém dá nada. Tenha paciência, Deus o favoreça, hoje não pode ser - e beba um desgraçado água dos ribeiros e coma pedras! Por isso, que remédio senão alargar os horizontes, e estender a mão à caridade de gente desconhecida, que ao menos se envergonhasse de negar uma côdea a um homem a meio do padre-nosso. Sim, rezava quando batia a qualquer porta. Gostavam... Lá se tinha fé na oração, isso era outra conversa. As boas acções é que nos salvam. Não se entra no céu com ladainhas, tirassem daí o sentido. A coisa fia mais fino! Mas, enfim... Segue-se que só dando ao canelo por muito largo conseguia viver.
E ali vinha de mais uma dessas romarias, bem escusadas se o mundo fosse doutra maneira. Muito embora trouxesse dez réis no bolso e o bornal cheio, o certo é que já lhe custava arrastar as pernas. Derreadinho! Podia, realmente, ter ficado em Loivos. Dormia, e no dia seguinte, de manhãzinha, punha-se a caminho. Mas quê! Metera-se-lhe em cabeça consoar à manjedoira nativa... E a verdade é que nem casa nem família o esperavam. Todo o calor possível seria o do forno do povo, permanentemente escancarado à pobreza. Em todo o caso sempre era passar a noite santa debaixo de telhas conhecidas, na modorra dum borralho de estevas e giestas familiares, a respirar o perfume a pão fresco da última cozedura... Essa regalia ao menos dava-a Lourosa aos desamparados. Encher-lhes a barriga, não. Agora albergar o corpo e matar o sono naquele santuário colectivo da fome, podiam. O problema estava em chegar lá. O raio da serra nunca mais acabava, e sentia-se cansado. Setenta e cinco anos., parecendo que não, é um grande carrego. Ainda por cima atrasara-se na jornada em Feitais. Dera uma volta ao lugarejo, as bichas pegaram, a coisa começou a render, e esqueceu-se das horas. Quando foi a dar conta, passava das quatro. E, como anoitecia cedo, não havia outro remédio senão ir agora a mata-cavalos, a correr contra o tempo e contra a idade, com o coração a refilar. Aflito, batia-lhe na taipa do peito, a pedir misericórdia. Tivesse paciência. O remédio era andar para diante. E o pior de tudo é que começava a nevar! Pela amostra, parecia coisa ligeira. Mas vamos ao caso que pegasse a valer? Bem, um pobre já está acostumado a quantas tropelias a sorte quer. Ele então, se fosse a queixar-se! Cada desconsideração do destino! Valia-lhe o bom feitio. Viesse o que viesse, recebia tudo com a mesma cara. Aborrecer-se para quê?! Não lucrava nada! Chamavam-lhe filósofo... Areias, queriam dizer. Importava-lhe lá.
E caía, o algodão em ramal Caía, sim senhor! Bonito! Felizmente que a Senhora dos Prazeres ficava perto. Se a brincadeira continuasse, olha, dormia no cabido! O que é, sendo assim, adeus noite de Natal em Lourosa...
Apressou mais o passo, fez ouvidos de mercador à fadiga, e foi rompendo a chuva de pétalas. Rico panorama!
Com patorras de elefante e branco como um moleiro, ao cabo de meia hora de caminho chegou ao adro da ermida. À volta não se enxergava um palmo sequer de chão descoberto. Caiados, os penedos lembravam penitentes.
Não havia que ver: nem pensar noutro pouso. E dar graças!
Entrou no alpendre, encostou o pau à parede, arreou o alforge, sacudiu-se, e só então reparou que a porta da capela estava apenas encostada. Ou fora esquecimento ou alguma alma pecadora forçara a fechadura.
Vá lá! Do mal o menos. Em caso de necessidade, podia entrar e abrigar-se dentro. Assunto a resolver na ocasião devida... Para já, a fogueira que ia fazer tinha de ser cá fora. O diabo era arranjar lenha.
Saiu, apanhou um braçado de urgueiras, voltou, e tentou acendê-las. Mas estavam verdes e húmidas, e o lume, depois dum clarão animador, apagou-se. Recomeçou três vezes, e três vezes o mesmo insucesso. Mau! Gastar os fósforos todos, é que não.
Num começo de angústia, porque o ar da montanha tolhia e começava a escurecer, lembrou-se de ir à sacristia ver se encontrava um bocado de papel.
Descobriu, realmente, um jornal a forrar um gavetão, e já mais sossegado, e também agradecido ao Céu por aquela ajuda, olhou o altar.
Quase invisível na penumbra, com o divino filho ao colo, a Mãe de Deus parecia sorrir-lhe.
- Boas festas! - desejou-lhe então, a sorrir também.
Contente daquela palavra que lhe saíra da boca sem saber como, voltou-se e deu com o andor da procissão arrumado a um canto. E teve outra ideia. Era um abuso, evidentemente, mas paciência. Lá morrer de frio, isso vírgula! Ia escavacar o arcanho. Olarila! Na altura da romaria que arranjassem um novo.
Daí a pouco, envolvido pela negrura da noite, o coberto, não desfazendo, desafiava qualquer lareira afortunada. A madeira seca do palanquim ardia que regalava; só de se cheirar o naco de presunto que recebera em Carvas crescia água na boca; que mais faltava? Enxuto e quente, o Garrinchas dispôs-se então a cear. Tirou a navalha do bolso, cortou um pedaço de broa e uma fatia de febra, e sentou-se. Mas antes da primeira bocada a alma deu-lhe um rebate e, por descargo de consciência, ergueu-se e chegou-se à entrada da capela. O clarão do lume batia em cheio na talha dourada e enchia depois a casa toda.
- É servida? A Santa pareceu sorrir-lhe outra vez, e o menino também.

E o Garrinchas., diante daquele acolhimento cada vez mais cordial, não esteve com meias medidas: entrou, dirigiu-se ao altar, pegou na e trouxe-a para junto da fogueira. Consoamos aqui os três - disse, com a pureza e a ironia dum patriarca. - A senhora faz de quem é; o pequeno a mesma coisa; e eu, embora indigno, faço de S. José.