- Abre-te, Sésamo! - gritava, o Raul, no meio do silêncio pasmado
da assistência.
A fiada estava apinhada naquela noite. Mulheres, homens e
crianças. As mulheres a fiar, a dobar ou a fazer meia, os homens a fumar e a
conversar, e a canalhada a dormitar ou nas diabruras do costume. Mas chegou a
hora do Raul e, como sempre, todos arrebitaram a orelha às histórias do seu
grande livro. Em Urros, ao lado da instrução da escola e da igreja, a primeira
dada a palmatoadas pelo mestre e a segunda a bofetões pelo prior, havia a do
Raul, gratuita e pacifica, ministrada numa voz quente e húmida, que ao sair da
boca lhe deixava cantarinhas no bigode.
“- Abre-te, Sésamo! - E o antro, com seu deslumbrante recheio,
escancarou-se em sedutor convite...”
As crianças arregalavam os olhos de espanto. Os homens estavam
indecisos entre acreditar e sorrir. As mulheres sentiam todas o que a Lamega
exprimiu num comentário:
- O mundo tem cousas!... Urros, em plena montanha, é uma terra de
ovelhas. Ao romper de alva, ainda o dia vem longe, cada corte parece um saco
sem fundo donde vão saindo movediços novelos de lã. Quem olha as suas ruelas a
essa hora, vê apenas um tapete fofo, ondulante, pardo do lusco-fusco, a cobrir
os lajedos. Depois o sol levanta-se e ilumina os montes. E todos eles mostram
amorosamente nas encostas os brancos e mansos rebanhos que tosam o panasco
macio. A riqueza da aldeia são as crias, o leite e aquelas nuvens merinas que
se lavam, enxugam e cardam pelo dia fora, e nas fiadas se acabam de ordenar. Numa
loja de gado, ao quente bafo animal, junta-se o povo. Todos os moradores se
cotizam para a luz de carboneto ou de petróleo, e o serão começa. É no inverno,
nas grandes noites sem-fim, que se goza na aldeia essa fraternidade. Há sempre
novidades a discutir, namoriscos a tentar, apagadas fogueiras que é preciso
reacender, e, sobretudo, há o Raul a descobrir cartapácios ninguém sabe como e
a lê-los com tal sentimento ou com tanta graça que ou faz chorar as pedras ou
rebentar um morto de riso.
Daquela feita tratava-se de uma história bonita, que metia uma
grande fortuna escondida na barriga de um monte. E o rapazio, principalmente,
abria a boca de deslumbramento. Todos guardavam gado na serra. E a todos
ocorrera já que bem podia qualquer penedo dos que pisavam estar prenhe de
tesouros imensos. Mas que uma simples palavra os pudesse abrir - isso é que não
lembrara a nenhum.
Da gente miúda que escutava, o mais pequeno era o Rodrigo.,
guicho, imaginativo, e por isso com fama de amalucado. No meio de uma conversa
séria, tinha saídas inesperadas e desconcertantes. Via estrelas de dia, que
ninguém,, por mais que fizesse, conseguia enxergar, assobiava modas
inteiramente desconhecidas, e desenhava no chão a cara de quem quer que fosse.,
o que era o cúmulo dos assombros. Enfezado., sempre a pegar com os outros e a
berrar como um infeliz quando depois lhe batiam, ouvia do seu canto a leitura
do Raul., maravilhado e a fazer projectos.
A fiada acabou tarde., com a assistência a cair de sono e a lutar
para prender na imaginação aquela riqueza oriental enfragada. E de manhãzinha.,
o Rodrigo, contra o costume,, esgueirou-se sozinho para a serra da Forca atrás
do rebanho. A história do Raul tinha-lhe encandescido os miolos. Necessitava
por isso de solidão e de apagar o incêndio sem testemunhas.
A serra da Forca é longe e é feia. Tem pasto, mas de que vale ?! O
passado deixou ali tanto grito perdido, tanto cadáver insepulto, tanta alma
penada, que até mesmo as ladainhas da primavera se desviam e passam de largo.
Mas é nos sítios assim amaldiçoados que o povo, talvez para as preservar da
coscuvilhice da razão, gosta de plantar lendas bonitas e aliciantes. E vá de
inventar que havia um tesoiro escondido naquele ermo de maldição. Encontrá-lo é
que era difícil. Enterrado entre penedias, guardado por mil fantasmas, quem
teria coragem de tentar a empresa? Ninguém. E o monte excomungado lá continuava
azulado na distância, agreste e assombrado.
O Rodrigo, porém, resolvera quebrar o encanto.
E, às pedradas ao gado, ao nascer do sol tinha-o na frente.
Ia simplesmente rasgar o véu do mistério. Ia imitar o ladrão da
história, com a diferença apenas de que uma vez dentro da caverna não se
esqueceria, como o outro, das palavras mágicas que lhe assegurariam a retirada.
Das riquezas que encontrasse não sabia ainda o que fazer. Nem
sequer pensara nisso, porque os tesouros não eram o seu fim verdadeiro. A
sedução de tudo estava no prodígio em si, na fascinação do próprio acto
assombroso que iria realizar.
E o pequeno, ágil e confiado, chegou ao alto, trepou à fraga maior
e olhou em redor. A seus pés jaziam, caídos, os dois grossos pilares da forca,
onde segundo a tradição tinham exalado o último suspiro todos os justiçados da
montanha. Sentar-se neles, tocar-lhes, era ainda, dizia o povo, uma pessoa
condenar-se a morrer de morte infeliz. Mas o Rodrigo trazia na vontade uma
força que o preservava dessas contingências. A fórmula encantatória
brincava-lhe nos lábios finos e frescos de criança. E uma alegria imensa, pura,
calma, arredou para longe os espectros patibulares que tentavam perturbar a
grandeza daquela hora. Abrir um monte! Dizer com ânimo, e certeza duas
palavras, e uma riqueza sem par oferecer-se passiva aos olhos da gente!
Para dilatar o gosto do poder que possuía (e talvez por um sentido
íntimo de falência de que não tinha consciência inteira), prolongava o tempo.
Murmurava mentalmente a ordem de comando que aprendera no conto, e cerrava os
dentes para que a boca o não pudesse trair antes do momento escolhido.
O rebanho, esquecido do dono, pastava, alheio aos segredos da
serra e do pastor. De quando em quando erguia-se do meio dele um balido
solitário, mas era um apelo sem resposta.
- Vai ser agora! - disse o Rodrigo, alto, a resolver-se.
E com medo de a montanha fender precisamente pelo sítio onde
estava, que era no pino e no meio da fraga mais alta, desviou-se um pouco para
a esquerda.
- É por ali, com certeza... Media os penedos, calculava o tamanho
do buraco, via de antemão as entranhas da terra expostas à luz do sol.
- E o gado? - lembrou-se então.
O gado pastava em baixo, num valeiro, em lugar por onde a
imaginação mais ardente não podia fazer passar o prodígio. Mesmo que rolassem
pedras, ou caísse a carvalha agarrada a um barranco, não havia perigo.
- Só se houver muito azar - rematou., a serenar os cuidados.
E de alma tranquila, mas a tremer de emoção, solenemente, o
pequeno feiticeiro ergueu a mão e gritou:
- Abre-te, Monte da Forca!
A sua imaginação ardente acreditava em todos os impossíveis. Tinha
a certeza de que o Sésamo da história do Raul existira realmente. Por isso
ouviu com serenidade e confiança o eco da própria voz a regressar ferido das
encostas. Tudo requeria o seu tempo.
Irreais, os horizontes perdiam-se ao longe, esfumados e frios.
Vago, o rebanho, à volta, tosava a erva mansamente. Impreciso, o gemido da
ovelha queixosa não conseguia transpor o limiar da consciência do pastor.
Transfigurado, o Rodrigo estava entregue ao milagre. Ordenara-o e
esperava por ele.
- Abre-te, Monte da Forca! - gritou de novo, já enfadado de uma
espera que não cabia na ilusão.
Qualquer coisa à volta pareceu tremer, e o coração do pequeno
saltou. - Abre-te! - reforçou, angustiado. Mas os horizontes começaram a tomar
crueza e sentido, o rebanho avolumou-se, e o balido da ovelha aflita subiu
mais.
- Era mentira! - e pelo seu rosto infantil e desiludido uma
lágrima desceu desesperada.
- Era mentira... - repetiu, debruçado sobre a alta fraga, a
soluçar.
Tudo nele tinha a verdade da inocência. Lograra e fora logrado já,
mas no jogo dos botões e a esconder da mãe um novelo de linhas para a baraça do
pião. Quando, porém, se tratava de cousas grandes como fábulas e mitos, a sua
alma cândida não concebia que pudesse haver mistificação. E a primeira vez que
tirava a prova àquela confiança, que tentara ver de perto a miragem, acordava
cruamente traído!
Valeu-lhe a feliz condição de criança. Ele ainda a chorar e já a
mão do esquecimento a enxugar-lhe os olhos. Breve como vem, breve se vai o
pranto dos dez anos. A ovelha chamava sempre. E o balido insistente acabou por
acordá-lo para a realidade simples da sua vida de pastor.
Ergueu-se, desceu da alta fraga enganadora, e, de ouvido atento,
foi direito ao queixume.
- Olha, era a
Rola... Um cordeiro acabara de nascer e a mãe lambia-o. O outro estava ainda lá
dentro, no mistério do ventre fechado.
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